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A dialética da fumaça: a comissão de frente da Paraíso da Tuiuti 2025

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor da Escola de Teatro da UniRio

Em 06/03/2025 às 16:34:25
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Se dentro de um espetáculo, em um teatro, um texto crítico deve fazer escolhas sobre o que será escrito, quando se trata de um desfile de uma escola de samba, tudo toma uma proporção gigantesca. Neste texto, escolho olhar o corpo e suas relações cênicas dentro da comissão de frente do G.R.E.S. Paraíso do Tuiutí, que desfilou na Marquês de Sapucaí, na configuração do Grupo Especial, no dia 4 de março de 2025. A criação coreográfica é de Claudia Mota e Edifranc Alves e o carnavalesco é Jack Vasconcelos.

Antes da fumaça, o fogo, e vice-versa

Na contramão do que “deveria” ser feito, não começo pela explicação do tema, justamente porque o tema escolhido pela Escola trata de um corpo e de um espírito forçado a SER na contramão de um sistema. Começo na fogueira alegórica da comissão de frente, começo pelo fogo porque ele é um elemento da natureza que transforma e o prefixo “trans” do verbo “transformar” é a base de todo esse acontecimento. TRÂNSito pelo Atlântico, TRÂNSito pelos gêneros, TRÂNSito pelos séculos.

O fogo faz a transição da matéria sólida em fumaça e o sólido é algo em que costumamos acreditar demais. Acreditamos na permanência das formas sólidas e lhes damos nomes definitivos. Mas, as fogueiras das alegorias da Tuiutí, nos mostram que tudo o que é sólido, desmancha no ar. É um acerto começar o desfile com o fogo e ele está representado não apenas nas faíscas pirotécnicas que jorram, mas também o fogo interno das integrantes da comissão, que dá corpo aos movimentos acalentados da coreografia. Os códigos da pomba-gira, da cigana, abrem caminho como labaredas na Avenida.

É importante destacar também as poses. A coreografia dessa comissão não é feita de movimento incessante, há suspensões em poses-chave. A pausa valoriza o movimento e vice-versa. A mais substancial é a pausa com os braços para cima, remetendo aos pelourinhos e mártires queimados em fogueira. Esse gesto faz ecoar os versos do samba-enredo “a bruxa do conservador” e “Xica vive na fumaça”, este último verso, inclusive, é o mais importante nessa abertura de desfile, talvez mais até do que “eu sou a transição”, que é mais evidente.

A fumaça é, justamente, a não apreensão da forma, é uma forma em movimento, transformação. A fumaça vela e revela ao mesmo tempo. Nesse sentido, a “saída de cena” da bailarina Daniela Raio, descendo pelo chão em meio à fumaça, torna concreto o que poderia ser apenas um conceito. Em meio à fogueira que demoniza os corpos trans, Xica Manicongo desaparece, qual fumaça, como se seus guias africanos a ajudassem, porque o corpo de baile afro dança, ajoelhado, movimentando braços e coluna na direção da traviarca transcestral. A prova disso é a sequência, na qual o coletivo de travestis sobe pelo mesmo alçapão por onde Xica desceu, como se aquele corpo martirizado estivesse grávido de vários corpos que nascem na frente do espectador.

Circularidade ancestral no contemporâneo

Como o enredo fala sobre inversão, me permito continuar pelo fim da coreografia. Tanto o momento do fogo (mencionado acima), quanto este aqui, o da circularidade, acontecem na última parte da coreografia, já no alto da alegoria. É o momento mais dialético do espetáculo: um palco giratório com Herika Hilton no centro e bailarinas travestis girando.

A circularidade é uma configuração própria da espiritualidade e da ritualística. Por um lado, o círculo é uma forma geométrica sem ângulos, portanto sem quebra de energia, é puro fluxo. Por outro, o circular dá fisionomia ao coletivo, é próprio do grupo porque não divide, mas compartilha. Não por acaso, historicamente, o palco giratório, antes de ir para os Estados Unidos e ser utilizado nos musicais, foi uma (provável) criação do encenador alemão Erwin Piscator para o teatro proletário, portanto coletivo.

Voltando à coreografia, nesse momento, o figurino e os gestuais não são mais os africanos do início da composição coreográfica, ao contrário, são contemporâneos. As bailarinas recriam movimentos da cultura ballroom e vestem faixas, onde estão escritos nomes de ofícios variados, como “bióloga”, “bailarina”, “cientista”, “comissária”. No centro, Hilton veste a faixa de presidenta. Isso tudo é índice das novas possibilidades que os próprios corpos travestis se deram, depois de muita luta.

Está aí, portanto a dialética: o movimento circular do palco giratório remete à ancestralidade vista no início da coreografia (a África, à uma lógica anterior à prisão do cis), enquanto o vogue e a presença de Hilton remetem ao contemporâneo. Trata-se do ancestral hoje e, nesse sentido, essa comissão dialoga com a comissão da Mangueira 2025, na qual ancestrais bantu se transformavam nos “crias” atuais, dançando passinho. Ali estão as populações contemporâneas afrodiaspóricas.


Teatralidade

Depois de uma vigorosa coreografia de base africana do corpo de baile, no chão da Marquês de Sapucaí, Xica Manicongo sobe no tripé (que tem proporções quase de carro) e é sequestrada de sua nação e, em terras brasileiras, é forçada a vestir um paletó. A violência colonial e cis é evidenciada de maneira bastante teatral.

Claudia Mota e Edifranc Alves são solistas do Theatro Municipal RJ, isso quer dizer que estão acostumados à interpretação em cena, tanto em balés, como em inserções de dança em óperas. Jack Vasconcelos, na parte de sua formação que corresponde à Academia, estudou no curso de Artes Cênicas da UFRJ, o que quer dizer que experimentou a linguagem teatral. Isso fica evidente na comissão de frente. É muito importante esse atravessamento do teatro na dança e no carnaval.

Contradições

Xica Manicongo foi parar em Salvador, Bahia, e, então, o prefixo “trans” ganha nova camada depois de atravessar o oceano. Salvador é um território de contradição, uma coisa não vive sem o seu contrário. A Roma Negra é conhecida por ser a cidade mais negra fora do continente africano e, ao mesmo tempo, nunca elegeu um prefeito negro.

Contradição contém “contra” e “tradição”, somada a “trans”, o evento ganha atravessamento de tempos, cruzamento de visões de mundo, contágio de conceitos. A iluminação do espetáculo, desse modo, contribui bastante para concretizar esse pensamento na Avenida. Na primeira parte do conjunto da encenação, ou seja, quando Xica ainda está em África, em sua plenitude, o corpo de Daniela Raio se destaca do coro e é fuzilado pelos refletores de luz branca, projetando no chão quatro sombras.

A multiplicação desse corpo faz apelo a um corpo coletivo e histórico. Por isso, faço questão de deixar aqui a lista dos nomes de todas essas bailarinas e bailarinos que compõem a comissão de frente da Paraíso do Tuiutí:

Queens + pombagiras: Yuka, Kley, Azueello, Eloá, Joanne Vênus, Taiwô, Bellas, Daniele, Aurora, Candela, Loren, Pietra, Alynah, Lua, Daniela Raio.

Opressores: Fernando, Guilherme, Salazar, Douglas, Damásio.

Ñgangas: Victor Ribeiro, Vitor Valdisser, Fernanda Lima, Ana Clara, Clara, Katarina Santos, Bruna Chebille, Gabriela Branco, Roberto, Marcos, Luigi, Luiza, Sofia Sol, Natália.

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